Um levantamento do Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância) mostrou que as internações de bebês menores de um ano por pneumonia, bronquite e bronquiolite no Sistema Único de Saúde (SUS) tiveram um recorde em 2023 no Brasil, com 153 mil internações no último ano – média de 419 por dia. O número de mortes na faixa etária de 0 a 4 anos por bronquiolite no País também cresceu 62% em 2023, na comparação com 2022. Embora existam vários agentes causadores de infecções do trato respiratório inferior em crianças pequenas, o principal é o vírus sincicial respiratório (VSR). O patógeno também é o maior responsável pelos óbitos relacionados a essas infecções na infância e, no mundo, causa cerca de 100 mil mortes por ano. Como já está demonstrado que o pulmão tem uma microbiota própria e que há uma conexão com a microbiota intestinal (chamada de eixo intestino-pulmão), pesquisadores têm investigado de que maneira esses ecossistemas poderiam contribuir para proteger as crianças do VSR, uma vez que a única vacina disponível é para a gestante e os métodos terapêuticos para diminuir a gravidade da bronquiolite ainda são limitados.
O vírus sincicial respiratório dispara um dano no pulmão causado por uma reação inflamatória local. Crianças que controlam bem essa resposta conseguem resolver a infecção. No entanto, em outras a resposta exacerbada do sistema imune acaba levando a muita secreção e a um dano importante no pulmão. Recentemente, os cientistas começaram a compreender que indivíduos com algum comprometimento intestinal, principalmente infecções intestinais crônicas, eram mais suscetíveis a outras respostas inflamatórias em órgãos distantes do intestino – como o pulmão. Diferentes estudos também têm mostrado que a microbiota intestinal produz efeitos relevantes no resultado clínico e na gravidade de infecções respiratórias.
Algumas dessas investigações sugerem que o problema são as alterações na composição da microbiota e nas concentrações intestinais de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), oriundos da microbiota intestinal e produzidos principalmente pela fermentação das fibras alimentares. Encontrados em altas concentrações no cólon, os AGCC desempenham papel energético fundamental para as células epiteliais, possuem importantes efeitos imunomodulatórios e auxiliam na manutenção da homeostase intestinal. Embora a produção seja no intestino, os AGCC acetato, butirato e propionato são absorvidos pelas células epiteliais, depois passam pelo fígado e chegam à circulação sanguínea.
Estudos já associaram, por exemplo, o aumento da ingestão de frutas e vegetais (fontes de fibras dietéticas usadas para a produção de AGCC) por mulheres grávidas com proteção neonatal contra resultados graves de VSR. Alguns experimentos mostraram, ainda, que fibras dietéticas e AGCC têm um efeito protetor no resultado de doenças alérgicas e inflamatórias, assim como em modelos experimentais de infecção respiratória – incluindo infecção por VSR. Para comprovar essas hipóteses, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) investigaram os mecanismos associados ao papel protetor de uma dieta enriquecida com fibra solúvel e a produção de AGCC na infecção por VSR. O trabalho começou em 2013 por meio da colaboração do grupo coordenado pelo professor doutor Marco Aurélio Vinolo, do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, com o grupo da professora doutora Ana Paula Duarte de Souza, docente e pesquisadora da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da PUC-RS.
No primeiro experimento, camundongos foram divididos e alimentados com dieta com celulose (controle) e com dieta rica em fibras (HF) que continha celulose e pectina, por quatro semanas. Depois de infectados com VSR por via intranasal, o resultado mostrou que a dieta HF protegeu da perda de peso induzida por VSR, além de reduzir a carga viral pulmonar. Em contrapartida, aqueles que ingeriram baixo conteúdo de fibras tinham inflamação exacerbada nos pulmões. Em seguida, o grupo caracterizou o efeito isolado do acetato – AGCC derivado da microbiota intestinal – administrado por via oral ou intranasal, e fez intervenções para investigar se a microbiota e o acetato estavam envolvidos na proteção contra a infecção por VSR. Camundongos com dieta HF receberam um coquetel antibiótico em água potável três dias antes da inoculação com VSR e a depleção da microbiota intestinal foi confirmada por uma diminuição significativa na carga bacteriana nas fezes.
“Quando depletamos a microbiota intestinal dos animais, essa mesma dieta rica em fibras não protegia mais. Isso significa que realmente a microbiota intestinal estava fazendo um efeito importante na proteção. Dessa forma, foi possível estabelecer uma relação de causa-efeito mostrando que a diminuição de AGCC torna o animal mais suscetível à infecção pelo VSR”, destaca a professora Ana Paula Duarte de Souza. Ao analisar o mecanismo desse resultado, os pesquisadores perceberam que a microbiota estava aumentando a produção de AGCC que, por sua vez, melhorava a resposta imune antiviral. Curiosamente, os mesmos efeitos benéficos foram constatados após tratamento com acetato por via oral, simultaneamente com infecção, e por via intranasal 24 horas após a infecção. O estudo ‘Microbiota derived acetate protects against respiratory syncytial virus infection through a GPR43-type 1 interferon response’ foi publicado em 2019 no Nature Communication.
Efeito profilático
Os pesquisadores também identificaram um efeito profilático semelhante após a suplementação oral com propionato ou butirato antes da infecção por VSR. Embora o acetato tenha mostrado melhor desempenho, o professor Marco Aurélio Vinolo lembra que essa ação positiva depende do contexto pois, apesar de terem algumas ações em comum, outras são exclusivas – uma vez que acetato, propionato e butirato têm características e ações diferentes. “O acetato, normalmente, é o ácido graxo com maiores concentrações sistêmicas e que consegue atingir células mais distantes do seu local de produção. Isso faz com que seja o que consegue ações em órgãos ou células que estão mais distantes incluindo, por exemplo, o pulmão”, detalha. Já o butirato tem várias ações relevantes no sistema imunológico, mas com uma limitação de atuação em tecidos mais distantes do intestino porque grande parte desse ácido graxo é absorvida e já utilizada pela célula epitelial intestinal ou pelo fígado. Portanto, o acetato é o que consegue ter ações sistêmicas mais importantes por causa dessa concentração mais alta.